terça-feira, 30 de agosto de 2011

Modernismo - Geração de 45: Clarice Lispector

     Metalinguagem e psicologia
     Com Clarice Lispector, o exame psicológico das personagens é levado ao limite

     Clarice Lispector (1920-1977) é uma das principais renovadoras da linguagem literária brasileira, preocupação essencial de sua geração modernista, de 45. A autora radicaliza a herança do exame psicologico das personagens, característica marcante de abras da geração anterior do Modernismo, como no romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
     Clarice explorará o recurso do discurso indireto livre, aquele que incorpora a fala da personagem à do narrador, aproximando o leitor dos pensamentos da personagem, e inda introduzirá uma inovação no Brasil.
     O fluxo de consciência, isto é, o registro muitas vezes vertiginoso do pensamento da personagem, sem demarcações claras de passado ou presente, de realidade ou desejo, é marca de toda a produção literária da escritora, desde sua estreia, muito jovem, aos 17 anos, com o romance Perto do Coração Selvagem(1944).
     recurso que consogrou, no exterior, escritores como o irlandês James Joyce, o fluxo de consciência, que remete à escrita automática dos surrealistas, permite o aprofundamento da sondagem psicológica, levando o leitor a um mergulho radical, existencial e intimista na alma das personagens. O instrumento de "entrar" na mente da personagem e reltar automaticamente seu pensamento tem o efeito de produzir rupturas na narrativa, quebras na concepção espaço-tempo.
     Em Clarice, importa menos o laço da tradição literária que o encontro de novos nexos e sentidos, numa outra concepção de narrativa. O  tempo íntimo, particular, tem prevalência sobre o tempo histórico, social.
     Em a Hora da Estrela, romance de 1977, mais uma característica marcante da obra de Clarice se destaca: a metalinguagem, quer dixer, a linguagem que trata da própria linguagem, criticamente, fazendo dela assunto artístico. O narrador se alonga, no início do livro, numa autocrítica radical de sua posição, elevada, em relação à da personagem, a humildade datilógrafa Macabéa, nordestina que migrou para o Rio de Janeiro. De que modo contar essa história? De que perspectiva? Com que tom? Com que tom? Com que palavras?, questiona o narrador.
     A autora também ficou conhecida pela predominância da epifania em suas narrativas. Em termos literais, epifania significa "manifestação religiosa," "aparição divina", mas, em literatura, é momento de fundo êxtase, de descoberta e revelação. A epifania de Clarice é o ponto de virada na vida da personagem, o momento crucial marcado por uma transformação profunda e irrevogável.
     A Clarice cabe ainda outra novidade: é apontada como a inauguradora da voz genuinamente feminina na literatura, exatamente por seu modo de contar e sensibilidade peculiar.

     A Hora da Estrela
     Clarice Lispector

     "(...) Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever. Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer? Se antes da pré-história já havia os monstros apocalípticos? Se esta história não existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos - sou eu que escrevo o que estou escrevendo. Deus é o mundo. A verdade é sempre um contato interior e inexplicável. A minha vida a mais verdadeira é irreconhecível, extremamente interior e não tem uma só palavra que a signifique. Meu coração se esvaziou de todo desejo e reduz-se ao próprio último ou primeiro pulsar. A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada funda em plena boca nossa. Então eu canto alto agudo uma melodia sincopada e estridente - é a minha própria dor, eu que carrego o mundo e há falta de felicidade. Felicidade?
     Nunca vi palavra mais doida, inventada pelas nordestinas que andam por aí aos montes.
     Como eu irei dizer agora, esta história será o resultado de uma visão gradual - há dois anos e meio venho aos poucos descobrindo os porquês. É visão de iminência de. De quê? Quem sabe se mais tarde saberei. Como que estou escrevendo na hora mesma em que sou lido. Só não inicio pelo fim que justificaria o começo - como a morte parece dizer sobre a vida - porque preciso registrar os fatos antecedentes.
                                                                        (...)
     Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda o desconheço, já que nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe.

Atividade:

01.Identifique a afirmação correta sobre A Hora da Estrela, de Clarice Lispector:
a) A força da temática social, centrada na miséria brasileira, afasta do livro as preocupações com a linguagem.
b) Se o discurso do narrador critica a literatura, as falas de Macabéa exprimem suas críticas às injustiças sociais.
c) O narrador retarda bastante o início da narração da história de Macabéa, vinculando esse adiamento a um autoquestionamento radical.
d) Os sofrimentos da migrante nordestina são realçados pelo contraste entre suas desventuras na cidade e suas lembranças de uma infância pobre, mas vivida no aconchego familiar.

02."Domingo ela acordava mais cedo para ficar mais tempo sem fazer nada. O pior momento de sua vida era nesse dia ao fim da tarde: caía em meditação inquieta, o vazio do seco domingo. Suspirava. Tinha saudade de quando era pequena - farofa seca - e pensava que era feliz. Na verdade por pior a infância é sempre encantada, que susto." (Clarice Lispector, A Hora da Estrela)

Todos os comentários abaixo se referem à produção literária de Clarice Lispector, exceto:
a) A linguagem contém como que uma armadilha: a sua simplicidade enganosa. Nem pela escolha dos vocábulos, nem por sua construção frásica parece ultrapassar um tom de coloquialismo e de narração sem surpresas.
b) É essa existência absurda, ameaçadora e estranha, revelando-se nos indivíduos e a despeito deles, o único fundo permanente de encontro ao qual as personagens se destacam e de onde tiram a densidade humana que as caracteriza.
c) Em sua ficção, o cotidiano é, a partir de certo momento, completamente desagregado.
d) Numa obra literária, para que o jogo da linguagem tenha a propriedade reveladora, é necessário que a linguagem, além de ser instrumento da ficção, seja também, de certo modo, o seu objeto, como de fato ocorre nos textos da autora.
e) O mito poético foi a solução romanesca da autora. Uma obra de tão aguda modernidade que, paradoxalmente, se nutre de velhas tradições, as mesmas que davam à gesta dos cavaleiros feudais a aura do convívio com o sagrado e o demoníaco.

                                                                           FIM

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