Vidas Secas
Graciliano Ramos
Deu-se aquilo porque sinhá Vitória não conversou um instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido falar em inferno. Estranhando a linguagem de sinhá Terta, pediu informações. Sinhá Vitória, distraída, aludiu vagamente a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma descrição, encolheu os ombros.
O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
- Bota o pé aqui.
A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata: deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado e bateu palmas:
- Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe.
- Como é?
Sinhá Vitória falou em aspectos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí Sinhá Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à beira da lagoa vazia.
A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil. Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos ossos, e o torpor que a embalava era doce.
(...)
O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua, com movimentos fáceis de entender.
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que lhe mostrava simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos, e o animal encolheu-se para sentir bem o contato agradável, experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza do borralho.
(...)
Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a ideia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de sinhá Terra. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. Baleia permanecia indiferente, mas o irmão se admiraria, invejoso.
- Inferno, inferno
Atividade:
01.O romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, é uma das obras mais conhecidas da segunda fase do Modernismo brasileiro (1930-1945). Trata-se de obra bem-acabada do romance de 30. Apresente características do movimento, baseado na leitura do texto.
02.Vidas Secas costuma apresentar uma inversão: ora gente se assemelha a bicho, num processo de zoomorfização; ora bicho parece gente, num processo de antromorfização. Com base no trecho apresentado, comente esses dois processos.
03.O episódio acima de Vidas Secas descreve a descoberta, pelo filho mais velho, da palavra "Inferno" e de seu significado. O mistério que envolve essa revelação põe em destaque que tipo de religiosidade do sertanejo nordestino?
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário